domingo, 25 de junho de 2017

Açoites de gabinete


Por Vinicius Brito | jornalista e compositor

Não há coincidência entre os coices simultâneos que o Carnaval vem sofrendo no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. São frutos da mesma cartilha: o conservadorismo, que se alimenta de doses cavalares de preconceito. A escola de samba incomoda.

E não é por causa da batucada dos nossos tantãs, pois a turma que nos sabota faz até pezinho quando uma bateria treme o salão nobre em festa de casamento ou baile de debutantes em clube de bacana. Bebericando espumante e trajando smoking ou vestido longo, até eles caem no samba. A bronca é outra.
Não é por conta de nossos inegáveis pecados, como a presença da contravenção (historicamente fundamental) em algumas agremiações cariocas ou pelas trapalhadas administrativas de certas entidades carnavalescas gaúchas. Quem quer nos devastar até usa destes rasos argumentos. Mas é sórdida hipocrisia, já que a sonegação que patrocinam e toleram é muito mais nociva. O buraco dessa perseguição é bem mais embaixo.

A revolta se dá porque as escolas de samba, com suas idiossincrasias, empoderam! Cada quadril que requebra na batida de um surdo de marcação é um sopro de dignidade em locais onde a dignidade nunca consegue chegar. Reside aí a essência da tentativa reacionária de demonizar o Carnaval, nos impondo a vilania de um falso maniqueísmo, onde somos a oposição ao salário do servidor e à merenda das creches. Jogo sujo, que se expressa com censura.

Fecham e interditam as quadras de ensaio, mas não por excesso de barulho ou falta de extintor de incêndio. Nossos crimes são contar a história, fazer pensar e transformar o pobre em protagonista de um espetáculo visceralmente popular. Nossa delinquência é subverter a lógica senhoril de um Brasil que não aceita que deixou de ser colonial. A escola de samba é a senzala que aprendeu a ler e rompeu os grilhões, pra histeria do senhor do engenho.

O problema é que a nossa arte veio no reboque da nossa fé. É cântico diaspórico, resistente e ancestral, que singrou oceanos banhado de sangue sob o açoite branco nos porões de navios negreiros. O ultraje continua. Só trocou-se a chibata pela caneta dourada e pela gravata. Na tela da TV, no altar, na tribuna e no gabinete.